5 de março de 2007
CALIGULA ANÁRQUICO
"I hope you aren't all trying to keep it real - I hate that expression."
Caligula
"The path of excess leads to the palace of wisdom"
William Blake
A excêntrica obra cinematográfica dos anos 70 me inspira. Primeiramente, por lidarmos com grandes nomes, muitas mentes em efervescência e divergências bastantes para criar um erro em película. Em primeiro lugar, temos Gore Vidal, roteirista e pesquisador da história Italiana, que nos proporcionou textos como o aclamado e premiado Ben-Hur. À procura de financiamento para seu filme, ele cai nas mãos de ninguém menos do que Bob Guccione, fundador e editor da revista Penthouse e, na época, um dos homens mais ricos dos EUA. Um artista frustrado em sua juventude, Guccione logo acerta as contas e decide investir todo o necessário para que o filme seja feito, estipulando um gasto em torno de 17 milhões de dólares, tirados do próprio bolso. Com algumas cláusulas, no entanto. O filme deveria ser extremamente fiel à Roma da época, em seus diversos aspectos; O filme deveria ser uma superprodução e contar com astros, cenógrafos e figurinistas do maior calibre; Levar às telas, como forma de atrair o público ao consumo de sua revista, as próprias modelos da Penthouse. Como cláusula última, Bob Guccione decidirá quem irá dirigir a obra. E ele aponta o dedo para Giovanni Brass, mais conhecido como Tinto Brass. Tinto Brass foi autor de filmes avant garde como "Nerosubianco" e "L'Urlo", porém, foi mais aclamado pelo sexploitaition chamado "Salon Kitty" - filme que levou à escolha de Guccione. Hoje, Tinto Brass é um dos grandes nomes do cinema erótico europeu. Uma célebre frase resume sua personalidade perante a indústria cinematográfica: "I put two balls and a big cock between the legs of the Italian cinema!".
3 líderes com diferentes visões.
Unindo-se a eles, o poder das atuações de Peter O'Toole, John Gielgud, Helen Mirren (na época, uma brilhante atriz do teatro Shakespeareano Inglês) e Malcom McDowell - o queridinho de Kubrick, com seu olhar de psicopata, talvez no melhor papel que já lhe foi oferecido, de um filme que pretendia muito mais do que conseguiu. O filme foi consumido primeiro pelas divergências ideológicas de quem liderava o projeto, depois pela censura, pela crítica narcisista e pelo próprio meio hollywoodiano que o tinha desde o início como uma ovelha negra a ser rejeitada (sem dúvida, pela participação de Bob Guccione na produção - a América fascista mostra mais uma vez sua cara e aponta as bruxas da vez. Isso sem contar a direção de um Italiano, algo que fere também o ego cinematográfico dos EUA, visto que a Itália foi sua grande inimiga nas produções de Westerns, o que os Italianos, inclusive, faziam melhor). O filme terminou rejeitado por Vidal, rejeitado por Tinto, rejeitado pelos atores que participaram. McDowell até hoje afirma ter remorso. John Gielgud, mais despojado, rí quando fala, após o fim das filmagens, que ele terminou sua participação em seu "primeiro filme pornográfico". O único que ainda o acolheu foi o pornógrafo Guccione, que hoje ainda tenta abrir os olhos do povo para a beleza do mesmo. Sem êxito, no entanto.
OS CONFLITOS IDEOLÓGICOS
De um lado, Gore Vidal deseja mostrar o filme com brilhantina demais, fugindo à imagem decadente que convém à Roma da época, e tentando criar um épico "politicamente correto" onde Calígula será dramatizado como um suposto "vilão maluco e excêntrico". Não excêntrico o bastante, claro. Excêntrico dentro dos limites da normalidade de nossa sociedade. Logo, de outro lado, se posicionam os artistas do feeling, Tinto Brass e Malcom McDowell, que, juntos visualizam o Calígula inteligente, quase um anarquista que quer testar até o limite o seu poder como imperador, quase um mártir que põe sua vida em risco, destruindo as burocracias e as organizações de dentro para fora, permitindo todas as liberdades e satirizando o Senado para mostrar uma ideologia, mesmo que seus atos o levem a morte. O desapego à vida, resultado do processo que se constrói desde seu nascimento até sua maturidade, vem à tona de uma forma cáustica e cruel, sadomasoquista e irresponsável, deixando rastros de perversão e morte até o seu fim desejado. Para tanto, Tinto Brass propõe imagens surrealistas, cenários bizarros e todos os aspectos fora da realidade histórica - a exemplo da gigante máquina que corta cabeças, e dos diversos aparatos sexuais no palácio de Tibério (Peter O'Toole), os freaks deformados, anões, hermafroditas. A fotografia acompanha o clima, sem dúvida com sua inspiração em Mário Bava, e em tudo um ar de semelhança com Jodorowsky. McDowell interpreta com furor. Consegimos ver, do início ao fim, o processo de desenvolvimento do personagem perfeitamente, seus medos e sua fúria em relação ao sistema do qual ele mesmo tinha se eleito líder.
O despudor marca o filme e mesmo o trabalho de câmera. É como se o banquete de libertinagens lançasse sua energia sobre as lentes e convidasse o telespectador não apenas a assistir, mas a sentir aquele prazer e a viver a mesma loucura. Saciar-se de vida, sem respeito, sem limites, uma ode ao prazer extremo e sem grilhões. Isso era o que Calígula desejava loucamente; Isso é o que o filme deveria se propor a fazer. Assim, Tinto Brass, com o apoio de McDowell, desrespeitaram o texto original de Vidal. Ofendido, este abandonou o barco. Bob Guccione ficou preocupado ao ver os rumos que tudo estava tomando. Para ele, Tinto Brass era um comunista e estava inserindo demais o discurso político, enquanto que tudo que Guccione queria com o filme era elevar a pornografia ao nível da arte. Por isso o apoio de grandes nomes; por isso a escolha de Brass. Somente pelo que ele tinha a oferecer na direção de cenas eróticas. Guccione acreditava em uma mudança na indústria cinematográfica, onde, a partir de então, ele pretendia que não mais houvesse censura ao sexo; onde pudessem ser realizados filmes (a exemplo de O Império dos Sentidos de Nagisa Oshima) que contivessem sua história, seu drama, sua comédia, seu romance, sua aventura, e, pior que não, seu sexo. Não o sexo implícito com velas e pétalas de rosa; não a cena que indica o que vai acontecer e depois corta para o dia seguinte. É como castrar a humanidade, colocar o sexo como algo alheio ao espectador, ou algo que não pode ser mostrado por algum valor qualquer que nem sabemos ao certo qual é. Violência, pode. Sexo não. Guccione, no entanto, falhou.
Às escondidas, juntamente com seu amigo Giancarlo Lui, visitavam os cenários com as garotas da Penthouse, e filmavam cenas explícitas que pretendiam inserir depois, na ilha de edição. Uma das piores brigas que ele teve com Tinto Brass foi, não só a respeito do discurso político, mas também quanto ao surrealismo, às bizarrices escatológicas, às aberrações e principalmente à violência. Quem diria, o rei do pornô abomina a violência(!). Ainda por cima, Tinto Brass se negava a cumprir o contrato, dizendo que não filmaria (na cena da piscina do templo de Isis) as garotas da Penthouse, escolhidas a dedo. Brass acabou filmando a cena como previa o contrato, mas após perceber algo de errado na ilha de edição e descobrir as cenas explícitas que pretendiam inserir, abandonou o projeto.
ENFIM
Desse misto, nasce um dos filmes mais polêmicos em muito tempo. Daqueles que muita gente pega na locadora dizendo "oh, ví um nome grego bonitinho e deve ser um filme histórico, vou assistir", sem saber nem quem era Caligula, e após assistir os primeiros minutos, larga de assistir e devolve, só porque em uma bela cena no campo vemos Caligula e sua irmã Drusilla, com poucas vestes, se divertindo sem pudor, e a câmera não deixa de filmar a vulva de Teresa ann Savoy. Que terrível!! Aquilo é uma vulva!! aquilo é um pênis!! aquilo é um ânus!!... ...E, talvez, essas sejam as pessoas que mais necessitam assistir o filme, do início ao fim, e saborear todo o discurso inserido nele, todas as sensações e todas as verdades. Diante da morte, um guarda que lhe fecha o caminho pergunta "A Senha! " e, Calígula, com o olhar irradiante e sua fúria louca, maldizente, egoísta e suicída, responde sorridente: "Escroto!", em seguida obtendo o seu golpe mortal.
Destaque: para a trilha sonora original composta por Bruno Nicolai e Renzo Rosselini, e as não-originais compostas por Aram Khachaturyan e Sergei Prokofiev, muito bem selecionadas e realizadas; Para a direção de arte de Danilo Donati; Para a ideologia anárquica no discurso do filme, nas cenas mais explícitamente dirigidas/criadas por Tinto Brass; Para os diálogos inteligentes criados por Franco Rosselini, ao longo de todo o filme; na edição de Nino Baragli / Enzo Micarelli na sequência da orgia no bordel-navio do império; Nas atuações de McDowell, O'Toole e Gielgud, perfeitas; Na maquiagem do decadente Tiberius, realizada por Giuseppe Banchelli; Na sequência surreal da máquina decepadora de cabeças, principalmente no aparato criado por Donati... uma incrível inspiração para o cinema de horror fantástico!
Curiosidade: Joe D'amato, empolgado com a produção, decidiu realizar também um filme doentio com o libertino personagem, intitulado Caligola: La storia mai raccontata (Caligula II: The Untold Story), também conhecido como Emperor Caligula, e, mais tarde, Caligola: Follia del potere, também conhecido como Caligula: The Deviant Emperor.
Saul Mendez para o Gore Bahia em 05/03/2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário